Fernando Machado

Páginas de uma Vida

24 de junho. Estava cochilando no sofá da sala e não iria conseguir terminar de ver o filme que rodava no DVD. Meu filho me mandou ir para a cama porque era perto das 4 horas. Deitei, mas não consegui dormir. Início do dia, madrugada adentro. Grupo de jovens passando em frente de casa, na maior algazarra, voltando da balada. Barulho de fogos. Lembrei-me dos tempos de adolescente, quando virava a noite dançando quadrilha e arrastava pé até quase o dia raiar. O forró corria solto, mas havia a expectativa de conseguir dormir um pouco e apostar no sonho da véspera para o dia de São João. Fazer adivinhação para saber o que me reservaria o futuro.

Engraçado, faz muito, muito tempo, entretanto não me senti envelhecer. De repente, dei conta de estar fechando a casa dos 50. Muitas coisas parecem distantes, mas a impressão é que ontem eu estava na adolescência. Daqui a duas semanas, engrossarei o grupo daqueles chamados idosos ou integrantes da melhor idade. Estou fechando um ciclo da minha vida, simbolicamente virando páginas de tristezas, de alegrias, de lutas, de vitórias, de perdas, de ganhos, de sonhos…

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A jornalista Gercina Primo (Foto: Divulgação)

A coisa mais remota de que consigo lembrar é de um período junino, em João Pessoa, com cerca de quatro anos, quando dançava na festa da escola, e o cheiro de goiaba madura parecia impregnar todos os locais do Teatro Santa Rosa, onde foi a apresentação. Em seguida, vejo-me pré-adolescente, entre os 11, 12 anos, na Gravadora Rozenblit, cantando uma “incelença”. Era um coral de estudantes como eu, sob a direção do maestro Nelson Ferreira, participando da trilha sonora de um filme, do qual jamais consegui saber o nome. Até hoje, recordo-me da letra: “Uma incelença Nossa Senhora das Dô, os anjo lá no céu cantando lovô. Uma incelença Nossa Senhora da Guia, os anjo lá no céu, louvando a Maria. Deus vos sarve Ana, Deus vos sarve ela, Deus vos sarve o oratório em que se guarda ela”. Assim mesmo, com todos os erros.

Na realidade, são muitas e variadas as lembranças que permeiam esses meus 59 anos, 11 meses e 16 dias. São inúmeras as portas abertas, fechadas, o caminho percorrido até aqui, por vezes muito, muito árduo. Mas a sensação que tenho, neste exato momento, é de que estou virando as páginas de um livro onde escrevi e apaguei tantas frases que pareciam significativas na hora que foram produzidas. Agora, relidas, simplesmente perderam a importância. Deixaram de ser prioridades. Já não tenho mágoas, não tenho tristezas, não tenho ressentimentos, apenas uma leve nostalgia.

Deixo para trás coisas que julgava importantes em determinadas épocas da minha vida, como se estivesse despindo roupas e peles que não mais me serviriam. Renovei-me a cada uma delas deixada pelos caminhos. Ao ultrapassar a casa do meio século, quase no fechar das cortinas, vejo o que poderia ter sido a encenação de um espetáculo de primeira categoria. Vejo-me descendo do palco como se também estivesse sepultando personagens representados e vividos, incluídos aí os atores da vida que comigo contracenaram e jamais souberam ou chegarão a saber de fato que não eram coadjuvantes, mas artistas principais. Isso me incomodou algum dia, mas hoje, agora, não tem a menor importância. Passaram…

Caminhei recentemente, lado a lado, com figuras que foram importantes em situações daquele contexto passado. Não me senti usada, não me senti desiludida. Amei, fui amada, parti, voltei, renasci. Desbravei veredas inimagináveis, em benefício de outros, em benefício próprio. Perdas e adeuses já não me assustam. Cresci. Como nos versos que escrevi certa vez, não mais indago se sou vencedora ou vencida. As feridas sararam todas. Saio vencedora, sim. Enterrei tristezas e coisas do passado, algumas nem tão distantes assim. Estou livre e plagiado John Lennon: AMO A LIBERDADE. POR ISSO DEIXO AS COISAS (E PESSOAS) QUE AMO LIVRES. SE ELAS VOLTAREM É PORQUE AS POSSUÍ SE NÃO VOLTAREM É PORQUE NUNCA AS TIVE.

No limiar dos 60 anos, como na música de Roberto Carlos, resumo o que poderia ser o meu epitáfio: “Se chorei ou se sorri, o importante é que emoções eu vivi”. E foram muitas emoções… ora aos acordes de Saigon ora sob o alumbramento do som de Gleen Miller em Moonlight Serenade (traduzindo, serenata da lua cheia), mas em pleno meio-dia, onde me despedi e ninguém percebeu. Estas são as páginas da vida da jornalista Gercina Primo.

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